Mulher, violência e pandemia: como o ativismo digital pode contribuir na transformação de uma realidade

Mulher, violência e pandemia: como o ativismo digital pode contribuir na transformação de uma realidade

Dois minutos. O que você faz em dois minutos? No Brasil, por exemplo, é registrado um caso de violência contra a mulher a cada dois minutos. Mas isso era em 2019, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Chegou 2020 e… Pandemia! O novo coronavírus (Covid-19) fez o mundo se curvar diante do invisível. Quarentena. Isolamento social. Não demorou para que as primeiras pesquisas apontassem para o aumento no número de casos de violência contra a mulher no Brasil. 

De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicados em abril de deste ano, os atendimentos da Polícia Militar a mulheres vítimas de violência aumentaram 44,9% em São Paulo, por exemplo. No Rio de Janeiro, a Justiça do Estado registrou aumento em torno de 50% dos casos de violência contra a mulher após o início da quarentena. Um levantamento sobre violência doméstica realizado entre os meses de março e abril de 2020, apontou que houve um aumento de 5% nos casos de feminicídios no país em relação a igual período do ano passado. Em dois meses, 195 mulheres foram assassinadas. O levantamento faz parte do monitoramento quadrimestral da série de reportagens “Um vírus e duas guerras”, resultado de uma parceria entre as mídias independentes Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.  

Outra pesquisa reforça esta realidade. No primeiro semestre de 2020, o levantamento ‘Monitor da Violência’ – uma iniciativa realizada pelo portal G1 em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública -, revelou que 1.890 mulheres foram mortas de forma violenta no país, boa parte em plena pandemia do novo coronavírus. Desses crimes, 631 foram de ódio motivados pela condição de gênero, ou seja, feminicídio. 

Além disso, outro dado também chama a atenção: 73% das vítimas de homicídio eram mulheres negras. A pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Giane Silvestre, em entrevista à repórter Larrisa Bohrer, da Rádio Brasil Atual, comenta que os dados atestam a correlação entre a violência contra a mulher e o racismo. “A gente observa que há uma desigualdade racial no perfil das vítimas de forma gritante. Quando analisamos os dados de comunicação de estupro ou agressão, o percentual de brancas aumenta. Isso significa, na verdade, que as mulheres brancas têm mais acesso aos canais de denúncia do que as negras”.

(Arte divulgação da Campanha: A Violência Contra a Mulher não pode ficar Invisível)

“Tive momentos em que dizia às minhas crianças: fechem os olhos e encolham-se. Como se isso fosse um escudo protetor, sabe? O meu desejo era de entrar na parede com elas, me tornar invisível aos olhos do agressor para poder respirar”. Arlete Alves de Almeida, coordenadora do Centro da Mulher de Belo Horizonte (MG). 

Violência contra a mulher: uma epidemia também invisível 

A diferença para a Covid-19 é que ela acontece há muito mais tempo e o mundo ainda não se curvou diante dela. Todos os dias mulheres são vítimas de violência, seja ela física, psicológica ou sexual. Muitos casos nem chegam a ser notificados, muitas mulheres morrem em silêncio sufocadas por um modelo ainda patriarcal de sociedade. A invisibilidade da violência contra a mulher potencializada ainda mais pela pandemia foi a mola propulsora para a campanha ‘A violência contra a mulher não pode ficar invisível. Denuncie!’, que tem como um dos objetivos sensibilizar a sociedade e as próprias mulheres sobre a importância de romper com esta realidade de violência.       

(Arte divulgação da Campanha: A Violência Contra a Mulher não pode ficar Invisível)

“Essa invisibilidade é real. Ela existe e está materializada em grande parte da sociedade que não enxerga, não compreende, não admite que muitas mulheres têm seus direitos violados”, destaca Arlete. Para ela, essa invisibilidade fomenta um círculo de violência que pode ser revivido por gerações. “É como se deixássemos de acreditar que é possível sorrir de novo. Uma situação que quando invisibilizada pode levar nossos filhos e filhas para esse mesmo lugar sombrio do medo marcado pela omissão. Sair desse círculo de violência não é fácil e não se faz sozinha”.

Ativismo digital e formação de redes tiram a violência contra a mulher da  invisibilidade 

(Arte divulgação da Campanha: A Violência Contra a Mulher não pode ficar Invisível)

E isso só foi possível graças à campanha promovida pelo Movimento do Graal no Brasil com o apoio da Misereor. Parte de um projeto maior que visa o empoderamento de mulheres em todo território nacional, a campanha ‘A violência contra a mulher não pode ficar invisível. Denuncie!’ também surge a partir da realidade imposta pela pandemia do novo coronavírus. 

Com a migração em massa de inúmeras atividades para o ambiente virtual – se a humanidade já estava conectada, durante a pandemia passou a estar ainda mais -, o coletivo de mulheres do Movimento do Graal percebeu, mesmo diante da crise, a oportunidade de potencializar ações de enfrentamento à violência contra a mulher. Com uma série de webinários, conteúdos para a imprensa e campanhas de sensibilização por meio das redes sociais, a campanha ganhou visibilidade e engajou milhares de pessoas na causa. 

Uma das grandes estratégias adotadas na primeira fase da campanha foi a articulação de parcerias com dezenas de organizações sociais que, juntas, potencializaram a campanha por meio de compartilhamentos de conteúdos, seja via plataformas digitais ou por meio de aplicativos de conversa. Ou seja, uma grande rede de organizações e pessoas engajadas à causa se formou e a força do ativismo digital que no início estava centrado no Movimento do Graal no Brasil ganhou mais braços, mais pernas, mais cabeças e conseguiu atingir e sensibilizar um número muito maior de pessoas. 

Uma visibilidade que chamou a atenção de hackers. Já no lançamento virtual da campanha, realizado no dia 25 de julho de 2020, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, um grupo invadiu a sala do aplicativo onde ocorria a videochamada. Foram mais de 200 tentativas de invasão, em que os hackers ameaçavam os participantes de roubo de dados pessoais. Felizmente, conseguimos criar outro ambiente virtual para realizar o lançamento, que prosseguiu sem mais problemas. 

Ao todo, 30 organizações parceiras estão envolvidas com a campanha. Somente no primeiro mês de ativismo nas redes socais, mais de 5 mil pessoas foram impactadas. Além disso, o primeiro webinário com o tema ‘Orientações legais: Lei Maria da Penha e o que mais’ reuniu mais de 70 mulheres e um homem participantes. Mais que números, os relatos de mulheres que se engajaram em nossa campanha nos mostram que estamos no caminho certo. Algumas se sentiram tão fortalecidas que conseguiram romper com relações de violência – um dos casos já está em situação de separação judicial. Outra falou sobre a nossa campanha com o companheiro dizendo para ele: “eu, agora, sei que existe o 180! Nunca mais grite comigo. Meu amigo, agora eu sei que não estou sozinha. Tenho a lei e minhas amigas espalhadas por aí!”. 

A campanha ‘A violência contra a mulher não pode ficar invisível. Denuncie!’ deu tão certo que continua até o próximo ano. Estão previstas a realização seminários virtuais, como o que será realizado no Dia Internacional pela Eliminação da Violência Contra a Mulher, lembrado anualmente em 25 de novembro. Na oportunidade será apresentado o resultado de um mapeamento sobre a existência de Conselhos, Rede ou Fóruns de Enfrentamento à Violência contra Mulheres no Brasil. Além dos webinários, um grupo de mulheres está em plena discussão sobre as questões voltadas às mulheres negras, principalmente as jovens. 

(Acervo: Graal Brasil)

Nós não vamos parar! O Movimento do Graal no Brasil só para quando todas as mulheres forem verdadeiramente livres e respeitadas em suas próprias escolhas. 

Movimento do Graal comemora centenário em 2021

Somos o Movimento do Graal, uma organização internacional de mulheres comprometidas com a transformação do mundo em uma comunidade de justiça e paz. Nosso movimento é ecumênico, cultural e social, e está presente  em 20 países, com status consultivo no Conselho Econômico e Social da ONU desde 1998. Atuamos na mobilização e no fortalecimento da organização de mulheres para que se tornem protagonistas nos diversos espaços em que estão presentes. Em 2021 o Movimento do Graal celebrará 100 anos de caminhada.